Tentava despachar-me o mais depressa que conseguia, tencionando que
me sobrasse ainda pelo menos uma meia hora para estar com a Wendy antes
de ir trabalhar. Mexia-me atarefada, tentando concentrar-me somente no
fogão, acabando de preparar os bolinhos de arroz. Enquanto isso, pelo
canto do olho, ia observando a minha filha, completamente embrenhada nos
seus trabalhos de casa, fazendo de vez em quando apenas uma pausa para
ir à mochila buscar mais um lápis ou simplesmente se levantar para ir
até ao lava-loiça buscar um copo de água. Olhei para o relógio depois de
ter terminado de confeccionar o nosso almoço. Ainda me sobravam uns 20
minutos...
Fui buscar um copo de água quase 3 minutos depois de
ela o ter feito – pelo menos pela 4ª vez só naqueles 30 minutos – e
fiquei a observá-la, a escrever debruçada sobre o seu caderno da escola.
A Wendy era extremamente boa aluna – uma das melhores da classe, por
sinal – e era frequente os professores chamarem a atenção para o facto
de ela se relacionar muito com os colegas da sala, ajudando-os nas
actividades e tudo mais. Eu, claramente, era uma mãe babada com tudo
isto e ficava incrivelmente feliz ao ver que a Wendy se esforçava tanto
por manter as boas notas e fazer muitos amigos, além da grande ajuda que
me dava ali em casa, apesar de ficar sozinha durante tanto tempo ao
longo do dia.
Olhava-a com o mesmo sorriso radiante já há uns bons momentos, despertando quando a vi largar o lápis e fechar o caderno.
–
Acabei! – Empunhou os braços no ar como se desse um viva tamanha era a
alegria que esse simples facto poderia trazer-lhe e olhou-me com um
sorriso doce, depois. Não disse nada, pelo menos até sentir o pêlo da
nossa gatinha branca roçar-lhe nas pernas, pedindo atenção. – Oh, olá
Charlés...
Pousei o copo de novo no lava-loiça, em silêncio. A voz
da Wendy chegava para encher aquela cozinha, aliás, aquela casa de
felicidade, mesmo estando ela sozinha numa das divisões. A leveza e
doçura do sorriso dela eram absolutamente contagiantes.
– Estive ocupada a fazer os trabalhos de casa mas sabes que mais? Agora já tenho um tempo para brincar com Vossa Excelência, Madame!
– Não consegui conter-me a esboçar um sorriso divertido ao ouvi-la
falar assim. Ela olhou-me, em seguida, de volta ao seu tom normal e
sereno, que me transmitia tanta calma. – O que foi, mamã?
– Nada. –
Limitei-me a responder. Notei-a a encolher os ombros nas minhas costas
antes de ligar o rádio na estação local. A Wendy adorava música, passava
horas a cantar e a imaginar melodias. Às vezes, acho que ela até
adormecia a murmurar algumas notas. Eu achava piada a essa tendência
artística dela. Conhecia alguém que costumava tê-la há 7 anos atrás.
Foi
uma questão de segundos até eu me virar e dar com ela a cantar como uma
verdadeira artista, simulando-se em cima de um palco quando apenas se
achava sentada na mesma cadeira, tendo como público apenas os seus
cadernos, lápis e folhas, bem como uma gata persa branca que a encarava
assustada de olhos arregalados. Além de mim, é claro.
Não consegui evitar uma gargalhada.
– Kawashita hazu no nai yakusoku ga kyou mo bokura no mirai o ubaou to suru... –
Vi-a olhar-me antes de se levantar para vir ter comigo, puxando-me pela
mão para que a seguisse até ao meio da cozinha, antes de desatar aos
saltos. Cantava sem parar, na sua voz fina e esguia. – Hoshigatteita mono o te ni shitemo... Sunao ni... Umaku waraenai no wa naze darou.
– Afureru namida wa yowasa ya koukai janai itami ga unda kakera de...
Comecei a cantar com ela também sem dar por isso, as duas em uníssono, como num coro em pleno concerto de Rock.
– Donna
shunkan datte unmei datte hitotsu dake tashikana mono ga aru… To
shitta... Hitori de kangaechatte ima o mayou yori ashita o... Mukae ni ikunda!
Dançávamos
de mãos dadas como duas crianças, aos pulos no meio da cozinha. Ela
saltava, gritava, cantava, tentava dar piruetas, tudo... Sem nunca me
largar as mãos ou deixar de olhar para mim. Ao fim de alguns minutos,
deixámo-nos cair exaustas no meio do chão. Fiz-lhe cócegas mal consegui
recuperar do cansaço, fazendo-a rir à gargalhada, encolhendo-se para
fugir do meu ataque antes de me abraçar novamente. Suspirei ao sentir a
respiração quente dela perto do meu peito, mantendo-a abraçada a mim,
protegida naquele lugar como eu costumava sentir-me com o pai dela, há 7
anos atrás.
– Adoro-te, mamã...
Só a abracei mais ao ouvir a
vozinha dela, fazendo-a abraçar-me de forma mais apertada, tal como
havíamos estado há um tempo, no meu quarto. Ela era... A única coisa que me restava. A única pessoa que eu ainda tinha. A única que eu sabia que sempre acreditaria em mim e compreenderia o que eu fazia. A única
que nunca me viraria as costas, seguramente, houvesse o que houvesse.
Que teria sempre uma palavra amiga para me reconfortar. Um abraço para
me dar quando eu precisasse dele. A nossa filha.
Ficaria
com ela ali durante o resto do dia, se pudesse fazê-lo. Ela sabia bem
que eu não me importaria, que daria tudo para trocar aquele trabalho no
supermercado por mais umas horas do meu dia com ela. Mas não era
possível. O sustento e o bem-estar dela dependiam disso. Beijei-a na
testa, adivinhando-lhe o sorriso. Ela riu-se depois, ao sentir o pêlo da
Charlés roçar-se na sua pele de novo, quando a gata resolveu vir
interromper o nosso momento, lançando-se para o meio de nós.
– Oh,
Charlés, sua gata ciumenta e tonta! – Ralhou ela tentando parecer
séria, mas sem conseguir fazê-lo no meio daquele enorme e encantador
sorriso genuíno.
Acariciei-lhe os cabelos, apoiando-me na cadeira à
minha frente depois para me poder levantar. Sem adiantar mais nada, ela
limitou-se a fazer o mesmo, ficando a olhar-me com os seus olhos
brilhantes e pequeninos – quase tanto como ela própria – como a um
objecto de adoração. Sorri-lhe depois.
– O que foi, Wen...?
Não
tive sequer tempo de terminar a pergunta. Os braços dela rodearam-me a
cintura, voltando a abraçar-me com força, enquanto o seu rosto se
escondia na minha barriga, devido à sua estatura baixinha. O meu sorriso
aumentou um pouco, mas de uma forma mais triste. Acariciei os seus
cabelos azuis escuros.
– Wendy vá lá... A mãe tem mesmo de ir. –
Ajoelhei-me na frente dela, beijando-a na testa e na bochecha depois,
olhando-a. – Ficas bem? Aguentas até a mãe chegar?
– Sim. –
Respondeu ela, olhando um pouco para o chão. Depois, como se lembrasse
de qualquer coisa extremamente importante de repente, olhou-me de novo
com uma expressão chocada e, simultaneamente, feliz. – Mamã?
Olhei-a, estranhando.
– O que foi?
– É... É hoje, não é?
Fixei-a durante um tempo, tentando perceber onde quereria ela chegar com aquela pergunta. Hoje? O que raio é que...?
O meu coração disparou de repente quando me lembrei daquela data. 13 de Outubro...
Jellal...
–
É hoje. Eu... Queria ir lá. – Disse ela, olhando-me muito mesmo em tom
de súplica. – Mamã? Eu queria ir buscá-lo. Tu... Tu prometeste que
quando o papá saísse da prisão iríamos ter com ele. Que estaríamos à
espera dele. Nós vamos, não vamos? Eu... Eu sonhei com isso toda a
semana, só que... Hoje de manhã esqueci-me. Por favor, mamã!
Engoli
em seco, olhando o chão completamente em choque. Faziam exatamente 7
anos que ele tinha sido condenado. 7 anos que eu tinha cometido, de
entre todos eles, o maior erro da minha vida. 7 anos que eu tinha
descoberto que estava grávida. 7 anos que eu fora, para proteger o
futuro da Wendy, forçada a viver aquela farsa, fingindo odiá-lo e
deixando-o sozinho contra o mundo. 7 anos que eu tinha parado de ser
feliz por completo.
7 anos...
... Que, se não existisse a Wendy, eu estaria morta.
–
Eu... – Olhei-a nos olhos, reparando nos pontinhos brilhantes que
ameaçavam correr-lhe pelo rosto. O meu coração batia a mil mas o dela
parecia tão agoniado que deveria ter parado no tempo. Suspirei, forçando
um meio sorriso em seguida, deixando que a minha mão lhe acariciasse as
bochechas quentes, impedindo as lágrimas de caírem por elas ao
fazer-lhe carinhos. – Ok. A mãe... A mãe vai pedir para sair mais cedo
do trabalho e passamos as duas por lá. Que achas?
Ver o sorriso de
felicidade com que ela me brindou em seguida antes de me abraçar
novamente quase escasseou qualquer medo que eu pudesse sentir. Sentir o
conforto que ela me dava, os seus mimos, a forma como tentava dar-me
forças para continuar a viver, mesmo que inconscientemente... Tudo o que
ela fazia por mim só naqueles poucos minutos, dava-me a oportunidade de
notar o me receio um pouco menor. Ela transmitia-me calma. Esperança.
Paz. As únicas coisas que só ele, um dia, me havia conseguido fazer
sentir.
A minha filha estava crescida. Há já muito tempo que esquecera os recados habituais do género “não abras a porta a estranhos”, “não mexas no fogão”, ou “não saias de casa sozinha”.
A Wendy já era esperta o suficiente para saber que todas essas coisas
não deveriam ser feitas. Já era uma mulherzinha, compreendia com
facilidade as boas e más acções. Mas existiam assuntos que até mesmo
ela, com toda a sua inteligência e perspicácia, nunca poderia saber
entender apenas com 6 anos e meio. Assuntos que poderiam chegar para
magoá-la, para que ela se sentisse plenamente sozinha no mundo apesar de
me ter a mim e ao pai, embora estivéssemos separados. Assuntos que eu,
ao longo de todo aquele tempo, lutara para ela não soubesse, nem
suspeitasse sequer.
Suspirei antes de beijá-la na testa,
encaminhando-me em seguida para a saída. Ouvia o miar da Charlés à
medida que me afastava, denotando também a voz da Wendy enquanto pegava
nela ao colo. Ainda consegui vê-la acenar-me antes de fechar a porta de
casa.
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- Capítulo II
- Capítulo IV
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