Virava-me na cama pela vigésima vez. Tentava, há horas, que os meus
olhos se fechassem, sem saber como fazer frente ao vendaval no qual se
tinha tornado a minha vida. Não conseguia pregar olho. Mirando o cenário
em volta de mim, limitava-me a fixar o quarto deixando que a minha
atenção se detivesse no relógio pousado em cima da cómoda. Eram mais de
4:00h da manhã.
Suspirei, esforçando-me por me levantar sem que os
meus ossos doridos fizessem o mínimo barulho. Não tencionava que ele
despertasse. Não tencionava que ele me visse sair porta fora, preferindo
escapulir-me com a certeza de que apenas nos veríamos novamente na
manhã seguinte. Porque... Eu já não queria olhar mais para a cara dele.
Eu, simplesmente, tinha asco de ter de suportar o perfume, o toque dele.
Não aguentava, sequer, o quanto ele me sufocava enquanto mantinha
aquele braço imundo em volta do meu corpo, prensando-me na cama para me
fazer ficar do seu lado. Não aguentava ter mais de fingir sentir alguma
coisa por aquele homem que não fosse o nojo, o desprezo, a fúria.
Mas
não era apenas com ele que eu estava furiosa. Estava furiosa com tudo,
comigo mesma, com a própria vida que me calhara em destino viver. Odiava
ter de pensar no quanto as coisas haviam mudado, no quanto o mesmo
rapaz que eu sempre havia amado desde criança havia mudado. Ele já não
era o mesmo. Deixara-se fazer uma das piores coisas que poderia ter
feito, e, apesar de eu compreender que as razões dele pudessem ser as
melhores, isso não lhe dava o direito de estragar a vida de inocentes
para que conseguíssemos sobreviver. Eu não conseguia, então, perdoá-lo
por conta disso. No entanto... O meu coração ainda pensava da mesma
maneira.
Vesti-me em silêncio, não tentando acender a luz e
pegando apenas nos sapatos e na mala para sair do quarto, rezando por
tudo para que ele não me ouvisse. A minha coluna queixava-se a cada
passo, a cada movimento que eu exercia tentando caminhar. Eu tinha
jurado que iria protegê-lo. Tinha jurado que nunca o deixaria. Mas,
naquele momento, era imperativo para a minha sanidade mental proteger
algo diferente. Proteger a única coisa de bom que tinha restado a nós dois no meio daquilo tudo.
Era
essencial que ele pudesse voltar. Eu precisava que ele pagasse pelo que
tinha feito, não apenas para que ele próprio se sentisse em paz com a
sua consciência mas também para que tivéssemos um futuro. Agora sim, as
coisas iriam resultar. Só me custava ter de fingir que não o queria
mais. Ter de manter aquela farsa que dizia a toda a gente – por vezes,
até mesmo a mim – que ele não era o homem certo. Que ele me enojava, que
estar perto dele me deixava quase doente. Eu podia estar a exagerar em
toda aquela encenação, mas ela era crucial para que tivéssemos uma vida.
Para que ele tivesse uma vida.
E agora, já não havia
mais volta a dar. As coisas estavam encaminhadas, eu apenas teria de
esperar que aquela separação não fosse dolorosa o suficiente para que
ele nunca mais me procurasse. Teria de ter esperança que ele ainda me
amasse, mesmo depois de todo o mal que eu lhe havia feito. Teria de
confiar, incansavelmente, nos sentimentos que ele dizia ainda ter por
mim. E teria de esforçar-me. Teria de trabalhar muito para manter as
coisas em ordem até que ele pudesse regressar. Mas eu iria consegui-lo.
Toda a vida tinha sido uma lutadora. Ele fora o responsável por eu me
ter tornado uma mulher assim.
Deixei-me ficar à porta de casa
depois, sentada nas escadas de cara escondida nos braços. Iria esperar o
amanhecer ali, não conseguiria entrar naquele lugar de novo, sabendo
que ele estaria sempre por perto, sabendo que as recordações dele iriam
sempre ocupar aquelas paredes, aquelas divisões, aquele chão e aquelas
janelas. Tinha a certeza que, depois daquela noite, não haveria a mínima
chance de que ele voltasse a pisar aquela morada tão cedo. Mas eu
ficaria sempre ali, mantendo-me à espera do regresso dele.
***
A
porta da sala de audiências foi a última coisa que ouvi depois de sair,
seguidamente a ouvir a sentença do juiz Não sabia como reagiria ao
julgamento inteiro e, talvez ter comparecido naquele lugar, fosse a
coisa mais horrível que eu poderia ter feito a mim mesma e a ele. A
forma como ele olhava para mim... Como me dizia com os olhos que ainda
me amava... Como me pedia desculpas por ter de nos fazer passar por
aquilo aos dois... Tudo isso apertava o meu coração de tal forma que
quase o obrigava a rebentar-me dentro do peito. Estar naquele lugar
estava a dar cabo da minha luta. Estava a dar cabo da farsa que eu
montara para que ele achasse que eu já não o queria mais.
Eu sabia
que seriam os olhos dele que me levariam à ruína. Tinha ignorado
prontamente os receios que me haviam surgido sobre ir até àquele lugar,
sobre assistir aquela que iria ser a maior injustiça a que eu já
comparecera na vida pois sabia perfeitamente que tudo o que ele havia
feito, havia sido por nós. Por mim. Tinha ignorado tudo isso, apenas
para ter a certeza de que, à parte de tudo, ali dentro ele teria direito
a comida, a um tecto por muito imundo que fosse. Sorri falsamente
perante o meu egoísmo enquanto as lágrimas me corriam cara abaixo. Quem
era eu para o condenar a um destino como aquele? Como é que eu tinha
sido capaz de uma tamanha traição macabra daquelas? Quando é que eu me
tornara numa mulher tão desprezível e cruel assim? Eu tinha estragado a
vida dele. Tinha estragado qualquer hipótese que viéssemos a ter de
recuperar a nossa vida juntos. Tinha-me apercebido naquelas últimas
horas ali dentro de que... Eu tinha apenas feito com que ele me odiasse.
Com que qualquer réstia de amor, de carinho que ele achasse que eu
merecia, eram perdidos através das minhas acções. Será que eu estava
mesmo disposta a pagar aquele preço?
Desencostei-me da parede
prontificando-me a regressar à sala, disposta a acabar com aquela farsa
no mesmo instante. Dei uns dez passos, parando ao sentir o meu ventre
levar um chuto. Travei-me a mim mesma, acariciando-o. Não. Eu não podia
entrar ali. Onde raios estava eu com a cabeça? Eu ia estragar tudo. Ia
fazer com que perdêssemos tudo. Ia... Oferecê-lo de bandeja a uma casa
de adopção qualquer.
Acariciei a barriga só depois. As lágrimas ainda me corriam cara abaixo.
–
Schh... Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem, amor... A mãe está
aqui. A mãe vai tomar conta de ti, sim? Até o pai voltar para nós, a
mãe... A mãe nunca te irá deixar sozinha.
– Nunca... Nunca irei deixar-te sozinha...
Acordei
aos poucos ainda totalmente ensonada, mexendo-me na cama para procurar o
som daquela voz doce. O quarto estava quente e, debaixo daqueles
lençóis e cobertores todos, eu conseguia distinguir no entanto aquele
corpo pequenino, esguio e bem cheiroso. O corpo da nossa princesa.
–
Já estás acordada, mamã? – Ouvi-a perguntar sempre na sua voz delicada
muito perto do meu ouvido, fazendo perdurar as carícias que fazia nos
meus cabelos com as suas mãos pequeninas.
– Hum... Já, mas se
continuares a mimar-me assim, a mãe vai querer dormir de novo... –
Suspirei, aninhando-me mais na almofada, chegando-me mais para o lado
dela para a conseguir abraçar contra o meu peito. Senti o seu rosto
prensar-se na curvatura do meu pescoço, antecipando a sua respiração
calma e compassada que sempre me fazia sentir tanta serenidade mesmo em
dias mais difíceis.
Também ela suspirou.
– Podias ficar em casa hoje... – Sussurrou ela. – Há muito tempo que não passas o dia comigo. Tenho saudades, mamã.
Quase
me comovi totalmente ao ouvi-la parecer ainda mais sensível do que era
costume aos meus ouvidos. Fi-la olhar para mim, acariciando-lhe os
cabelos depois. Ela era a minha princesa. A princesa dele. A nossa
princesa. E aqueles olhos dela, aqueles cabelos... Cada vez eram mais
iguais aos do pai. Seriam essas algumas das razões que me faziam amá-la
tanto?
– A mãe tem de trabalhar, amor. Sabes que... Temos de ter
tudo pronto para quando o pai voltar. – Disse só baixinho esforçando-me
para que ela me visse com um sorriso. – Eu prometo que... Mal as coisas
se encaminhem e ele esteja de volta, nós... Nós vamos voltar a ser uma
família. Vamos passar todo o tempo juntos. Prometo. Sim?
O sorriso
dela abriu-se de felicidade, antecipando o abraço quente e apertado que
me deu em seguida. Às vezes... Sentia que estava a ser cruel por estar a
dizer-lhe algo assim sem ter quaisquer certezas de como o Jellal veria
as coisas agora. Mesmo assim, ainda guardava uma secreta esperança de
que ele viesse a perdoar-me e a aceitar a Wendy como filha dele. Não
podia pedir-lhe que agisse como se nada houvesse acontecido mas podia
sempre pensar que ele continuaria o mesmo homem que desejava mais que
qualquer coisa ser pai, certo? Isso dava-me alento para dizer aquelas
coisas à Wendy, mesmo que eu soubesse que poderia não ser tão fácil de
encarar a realidade assim. Além de que ela ficava feliz. E ver o sorriso
dela quando se falava do pai dela e de sermos uma família de novo, era o
bastante para mim.
Vi a sua estatura esguia e leve soerguer-se da
cama e calçar os chinelos antes de vestir o roupão cor-de-rosa que lhe
tinha oferecido naquele último Natal. A sua expressão alegre dava pulos
de contentamento enquanto ela me beijava na testa e se encaminhava para a
porta numa correria quase louca de tão animada.
– Vou preparar-nos o pequeno-almoço!
- Prólogo
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- Prólogo
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